Texto do colaborador Daniel Cardinali *
Entre choque e descrença, americanos – e o mundo inteiro – acompanharam a apuração dos votos para o cargo político mais importante do planeta; a cada hora que se passava a inesperada vitória do histriônico candidato republicano Donald Trump ia se tornando mais irremediável. Apesar de absolutamente todas as pesquisas eleitorais indicarem o contrário, a candidata democrata Hillary Clinton, que tinha esperanças de se tornar a primeira mulher presidente dos EUA, foi derrotada, mesmo tendo recebido a maioria dos votos, graças ao complexo e anacrônico sistema eleitoral americano.
O magnata do mercado imobiliário, encarnando um discurso populista, sensacionalista e antiestablishment (o famoso “contra tudo que está aí”), enfrentou não apenas o partido democrata, mas também os caciques de seu próprio partido e a mídia; venceu contra tudo e contra todos. Sua arma secreta foi apelar para a classe trabalhadora branca, rural e com pouca instrução formal, que se sentia cada vez menos representada pelo cosmopolitismo liberal e urbano da era Obama. O país“pós-racial” que alguns queriam fazer crer havia chegado com a eleição do primeiro presidente negro não se mostrou uma realidade, e as profundas divisões raciais do país definiram o resultado eleitoral.
Trump venceu fazendo uso de um discurso que, mais do que conservador, é reacionário, pretendendo dar marcha ré na história. Seu slogan de campanha, “make America great again” (“tornar a América grande novamente”) ressoou profundamente com os nostálgicos de um “tempo melhor”, em que negros, latinos, mulheres e LGBTs “sabiam o seu lugar”. O candidato é a epítome do macho-alfa chauvinista; seu discurso misógino foi vendido como “crítica ao politicamente correto” e se misturou a denúncias de abuso sexual ao longo de vários anos de pelo menos uma dúzia de mulheres. Nada disso impediu o “teto de vidro” da presidência dos EUA de se esfarelar. Que uma campanha tão profundamente “anti-mulher” tenha vencido a primeira candidata à presidente de um dos dois partidos mais importantes dos EUA é especialmente simbólico.
Mas o que a vitória de Donald Trump significa em termos de direitos LGBT, afinal? Para responder essa pergunta é preciso, inicialmente, analisar a resposta da mesma pergunta em relação aos oito anos de governo Obama. Barack Obama assumiu a presidência após o governo do conservador-religioso George Bush, que flertou abertamente com a homofobia para garantir sua reeleição em 2004, no auge da reação à aprovação do casamento gay em Massachusetts,em 2003. Neste sentido, o presidente democrata foi um grande alívio para o movimento LGBT americano. Apesar de alguma reticência inicial, se tornou o primeiro presidente a apoiar ainda no cargo o casamento entre pessoas do mesmo sexo e equiparou a luta por direitos civis LGBTs às lutas de mulheres e negros em seu segundo discurso inaugural. Durante a sua presidência foram aprovadas importantes leis para garantir os direitos LGBT: a lei de prevenção de crimes de ódio (“Lei Matthew Shepard”) e a revogação da política que impedia gays e lésbicas de servirem abertamente nas forças armadas, conhecida como “don’t ask, dont’ tell” (“não pergunte, não responda”). Ademais, no mesmo período, a Suprema Corte, com a atuação das duas juízas escolhidas por ele para integrá-la, proferiram uma série de decisões que terminaram por garantir o reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo como um direito constitucional em todo o país em meados de 2015.
Por outro lado, a presidência de Barack Obama se deu muitas vezes a despeito dos incansáveis esforços de sabotagem do Congresso, onde encastelaram-se representantes e senadores republicanos. Dispostos a impedir seu governo, travaram todo e qualquer projeto de lei de interesse do presidente, muitas vezes com consequências terríveis para o país. Diante da sua falta cooperação, o Presidente percebeu que o Legislativo talvez não fosse em realidade tão necessário, e descobriu o poder normativo do Executivo para alterar o ordenamento jurídico. Com efeito, muitos direitos LGBTs foram garantidos por meio de “decretos presidenciais” (ordinances) e da atuação reguladora das diversas agências e órgãos da administração federal. Assim, por exemplo, o direito de visitação hospitalar de casais do mesmo sexo, direitos previdenciários de servidores federais, regulações antidiscriminação no mercado de trabalho e no mercado imobiliário, etc.